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Repórteres e juristas discutem a relação entre a cobertura jornalística de crimes e o desejo por punição

Para palestrantes, Direito penal é uma resposta insuficiente para a violência, porque não leva em conta as causas da criminalidade

Por Giulia Afiune

seminario tarde-91Quando ocorre um crime, toda a expectativa é pela culpa. Se a pessoa é condenada, há aplausos, rojões. Mas quando há a declaração de inocência, dizem que o Judiciário foi leniente, está corrompido, os advogados inventaram provas. Por que a sociedade tem essa ânsia por castigo, por punição?”, questionou o advogado e ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, durante o seminário “O Crime e a Notícia”, realizada em 25 de abril em São Paulo.

Mariz disse que, com frequência, as pessoas não percebem que a sociedade também tem responsabilidade pela criminalidade no País. “Quando a sociedade abandona a criança e depois defende que um menor infrator seja colocado na cadeia, ela está, na verdade, tentando encobrir algo que foi gerado por ela mesma.”

O evento, promovido pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), reuniu advogados, juízes, promotores, delegados e jornalistas de mídia impressa e eletrônica, rádio e TV durante um dia inteiro de debates no auditório do Prédio dos Gabinetes do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Por meio do diálogo e da troca de experiências entre profissionais de direito e da comunicação, o objetivo foi de conscientizá-los sobre a importância dos valores jurídicos humanistas na apuração de fatos criminais durante o processo de construção da notícia.

“Hoje clama-se por polícia na rua, pena de morte, aplaude-se esquadrões de extermínio, penas mais rigorosas, mas não se discute as causas do crime e como evitar que ele aconteça”, concluiu Mariz, um dos fundadores do IDDD, na mesa de abertura “Direito de defesa, imprensa e democracia”, que contou também com a participação do jornalista Eugênio Bucci, professor da ECA-USP.

“Ao dar grande destaque ao sofrimento das vítimas e dos familiares, a mídia contribui para criar um senso comum de que punição com prisão é a única resposta para resolver a violência”, afirmou a promotora Ana Lucia Menezes Vieira, doutora em Processo Penal, que participou da oficina “Influência da imprensa em procedimentos penais”. “O problema é que o Estado só responde com o Direito Penal e não cria políticas públicas que deem oportunidades para a pessoa escolher praticar ou não o crime”, ponderou.

Crime como espetáculo

Assim como Mariz e Vieira, outros palestrantes do seminário associaram essa visão punitiva com a maneira como a violência é retratada pela mídia. Na oficina “Influência da imprensa em procedimentos penais – Crimes contra a vida (casos julgados no Tribunal do Júri)”, o jornalista Valmir Salaro, da TV Globo, que cobre casos policiais há 35 anos, contou sua experiência pessoal como repórter no caso da Escola Base.

Em 1994, os quatro donos de uma escola infantil em São Paulo e os pais de uma das crianças foram acusados de abusar sexualmente dos alunos. A imprensa, com base em informações passadas por autoridades que investigavam o caso, retratou os suspeitos como culpados antes do final do processo e sem provas definitivas. A escola e as casas de alguns acusados foram depredadas, eles foram rechaçados, perderam seus empregos, se afastaram de suas famílias. Julgados inocentes, sofrem as consequências até hoje.

“Eu fui o primeiro a dar a notícia, que estava respaldada pelo laudo do IML, pela informação do delegado, pela posição do promotor que denunciou e pelo juiz que decretou a prisão de duas pessoas”, contou o repórter. O episódio marcou a carreira de Salaro, que diz ser lembrado mais pelo erro que cometeu do que por inúmeros outras reportagens relevantes. “Eu me autocondenei por ter ajudado a acabar com a vida daquelas seis pessoas”.

A repercussão do caso na imprensa e a reação violenta da sociedade se encaixam no que o jornalista e professor da ECA-USP Eugênio Bucci chamou de “guilhotinas simbólicas”. “Hoje existe demanda pelo espetáculo da destruição em praça pública, do destroçamento de reputações. As execuções de Paris no século 18 acontecem hoje nas páginas da imprensa”, refletiu.

No entanto, Salaro acredita que o erro aumentou posteriormente seu cuidado ao apurar a veracidade das informações e os diferentes lados da história. “Hoje eu me preocupo muito mais. Aprendi que o jornalista não é um justiceiro, não deve ir lá para massacrar, crucificar, esse não é o nosso papel”. Em meio à revolta causada pela morte de Isabela Nardoni, Salaro foi criticado por colegas jornalistas por entrevistar o pai e a madrasta da menina, acusados de cometer o crime. “Eu fui o único que dei oportunidade para o casal falar, porque até aquele momento a imprensa só estava mostrando um lado. Eles já entraram no julgamento condenados.”

O repórter criticou também a comemoração após a condenação do casal. “Tinha um caminhão de som tocando a música da vitória do Ayrton Senna, fogos de artifício, e as pessoas batiam no camburão onde saiu o casal. Isso é justiça?”

Na oficina “Influência da imprensa em procedimentos penais”, Marina Dias, presidente do IDDD, lembrou que esteve em um julgamento em que os presentes comemoraram a condenação, o que motivou críticas do juiz. “Nós não temos nada para comemorar. Hoje é um dia de tristeza, de sofrimento para a vítima e para a pessoa que foi condenada. Estamos diante de uma tragédia. ”

Bucci explicou que a origem dessa urgência por punição está na própria sociedade, e não na atividade jornalística. “As redes sociais refletem de forma muito menos mediada, mais intensa e direta esses conteúdos emocionais. Nesse ambiente, os clamores são muito mais violentos. Lógico que, às vezes, um jornal, uma revista, uma emissora de TV, potencializa isso.”

Ética no jornalismo criminal

Mariz defendeu que um dos papéis fundamentais da imprensa é fazer uma cobertura analítica dos casos criminais. “A imprensa precisa nos ajudar com um papel pedagógico de explicar o fenômeno da criminalidade. Por que a criança de 15, 16 anos comete um crime? O que fazer para impedir que isso aconteça? É preciso que a imprensa ajude a discutir o crime para evitá-lo”, sugere.

Eugênio Bucci concorda. “A atitude do jornalista deve ser de ponderar e tentar equilibrar as versões possíveis de forma racional.” O repórter precisa tomar cuidado para não apelar para o sensacionalismo, que, de acordo com o professor da ECA-USP, é “o prejuízo da informação em favor da exploração de sensações, que apenas reverbera sentimentos como medo e sadismo.”

Apesar de ainda haver muito para melhorar, Bucci reconhece que alguns veículos já começaram a conter esse sensacionalismo. Para o repórter Ricardo Kotscho, que participou da mesa “Direito de Defesa, Imprensa e Equilíbrio”, a última do Seminário, essa melhoria depende de cada jornalista. “Existem dois tipos de ética. A coletiva, que são os manuais, os códigos, as normas, e a individual. Eu aprendi que o que prevalece é a ética individual. Nem o professor nem o editor vão conseguir dizer para você que uma coisa tá certa ou errada. ”

Kotscho acredita que a ética vem da formação e do motivo pelo qual cada um escolheu a profissão. “Se você quer ser jornalista porque tem um compromisso com a sociedade, com seu tempo, com a sua gente, você tem um tipo de atitude. Se você é jornalista para ganhar dinheiro no fim do mês…Depende da sua opção de vida.”

Publicado originalmente no Site do Seminário ” O Crime e a Notícia” : ocrimeanoticia.wordpress.com

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